terça-feira, 7 de agosto de 2018

EU TAMBÉM TENHO UM BARCO QUE CANTA

Capítulo 01 - Eu também tenho um barco que canta.

- Alguém está me observando tio Bran? - Mismet questionou.
Bran Revenmar estava em sua cozinha, fazendo biscoitos. Ele olhou para a menina de quatro anos de idade, a filha da meia-irmã de sua esposa, que se sentava nos degraus duros que levavam para sala de jantar.
- Seu tio Bellor vem ver todos nós. Ele já deve estar chegando.
Mismet estranhou.
- Não. Eu não quis dizer o tio Bellor. Eu quis perguntar se tem alguém me "vigiando".
Bran sorriu.
- Você está aqui comigo, então eu estou vigiando você.
A garota chocalhou a cabeça.
- Não. Não você ou a tia Xitea. Eu quis indicar outra pessoa. Alguém que eu não consigo enxergar.
Bran quase derrubou a colher da mão. Ele baixou o talher ao lado da vasilha que continha uma mistura amarela e tentou manter a voz calma quando indagou:
- Por que você acha isso, Mismet?
Mismet ostentava um barquinho de brinquedo. Ao virar o objeto na mão, ela disse:
- Eu senti que tinha alguém perto de mim. Achei que fosse alguém atrás de mim, mas quando virei... Não vi ninguém... - Ela girou a cabeça na direção da janela, depois voltou a olhar pensativa para o seu tio.
- Não havia ninguém ali.
Bran suspirou.
- Nós vivemos muito isolados aqui na fazenda, Mismet, logo é natural que você fique um pouco apreensiva. É só sentir um ventinho - nos seus cabelos loirinhos - ou ouvir algum barulho - com suas orelhinhas pontudas - que sua imaginação começa a pregar peças em você.
- Será? - Mismet questionou. - Mas, dessa vez, eu não ouvi o vento nem nada.
Bran se apoiou no balcão para se manter estável.
- Você já sentiu isso "outras" vezes?
- Sim, às vezes, quando eu brinco lá fora - Mismet disse. - E sempre que agente vai até Silverheart.
Bran se aproximou e se ajoelhou ao lado de Mismet. Tocando gentilmente seus braços, ele disse:
- Mismet, isso é importante. Você nunca viu "de verdade" uma mulher olhando para você, VIU?
Mismet inclinou a cabeça para o lado enquanto olhava nos olhos de seu tio.
- Você acha que é uma mulher?
Bran sacudiu a cabeça.
- NÃO... desculpe... Não foi isso que eu quis dizer. Eu quis dizer "alguém", qualquer "pessoa". Você nunca notou ninguém?
Mismet negou com a cabeça.
- Não, senhor.
Naquele momento, eles ouviram o som de um navio aportando lá fora, e a tia Xitea gritou:
- Bran! Seu irmão chegou!
Bran olhou rapidamente para a janela, depois voltou a olhar para Mismet.
- Acho que é melhor não falar nada disso para a sua tia. Essa sensação que você às vezes sente pode deixá-la preocupada. Você sabe como ela é quando se trata de estranhos e intrusos. E nós não queremos preocupar a sua tia Xitea, não é?
- Não, senhor - Mismet disse. - Então, é só uma sensação? Não tem ninguém olhando para mim de verdade?
- É isso mesmo - Bran disse. - Agora, vamos receber o seu tio Bellor.
Mismet se levantou, ainda segurando o pequeno barco de brinquedo.
A fazenda dos Ravenmar, em Gellius, consistia de vários ambientes no subterrâneo que davam para um espaço entre muros altos que servia como o pátio central. Bran tomou a mão livre de Mismet e a conduziu pelo pátio, subindo por uma escada e depois passando por outra escadaria interna. Foi uma longa subida para uma garota tão pequena, mas Mismet não reclamou. Ela disse:
- O tio Bellor possui um navio novo.
- Como você sabe disso? - Bran perguntou.
- Antes de a tia Xitea chamar o senhor, eu ouvi o som da embarcação chegando, na minha mente... Ela estava cantando uma música triste... Além disso, esse barco parece tremer menos do que o velho.
Bran franziu o cenho.
A escadaria interna os levou para a porta arqueada do domo de entrada da fazenda. Quando Mismet e Bran saíram pela porta e receberam o calor escaldante dos vulcões gêmeos de Gellius, um homem sorridente se aproximou.
- Aí estão vocês!
- Olá, tio Bellor - Mismet disse. Ela mostrou seu brinquedo. - Eu também tenho um barco que canta!
Bellor franziu o cenho por um momento mas depois sorriu.
Bellor Hartman era o irmão mais novo de Bran. A esposa de Bellor, Elara também era uma fazendeira de camarão. Eles viviam em Silverheart, um dos mais antigos assentamentos em Gellius, onde possuíam e operavam uma pequena estalagem, "o canto da sereia". Embora Silverheart ficasse a apenas 33 quilômetros da fazenda dos Revenmar, Bellor e Elara não os visitavam com frequência.
- Minha nossa, Mismet - Bellor disse ao abaixar para abraçá-la.- Você está crescendo muito rápido, daqui a pouco estará maior do que um dragão dourado! Soltando Mismet, ele se levantou para abraçar seu irmão. - Estou tão contente em ver você, Bran.
- Você parece muito bem, Bellor.
- Desculpe passar tanto tempo sem visitá-los. Entre cuidar da fazenda e da estalagem, parece que nunca temos tempo para mais nada.
Mismet olhou atrás de Bellor e viu Elara e a tia Xitea ao lado de um barco verde-escuro com uma cabine em forma de triângulo e três remos de cada lado. Querendo olhar a embarcação mais de perto, ela começou a se aproximar. Ouviu a mesma canção de outrora, porém agora vinha de seu barquinho.
Xitea e Elara estavam de costas para Mismet, e nada ouviram, olhavam para os viveiros de camarão que se espalhavam uniformemente pelo mangue do estuário, e conversavam sobre coisas que fazendeiros de camarão sempre conversam.
- Como está a "safra"?
- Não posso reclamar.
- Eu precisarei substituir dois viveiros.
- Contaminados?
- Sabotados.
- Pelos Akas?
- Provavelmente.
- Malditos piratas.
- Antes fossem...
Vendo que as duas elfas estavam perdidas naquela conversa a ponto de não notarem Mismet, a garota chegou perto do barco e estudou o emblema que brilhava (como seu barquinho) ao som de uma canção triste e a inscrição em élfico abaixo da cabine: "Cânticos fúnebres da princesa Alerana". Apesar da tristeza sem motivo aparente, ela sentiu orgulho ao compreender o texto. Havia a pouco aprendido a ler o básico da língua antiga com antigos pergaminhos que seu tio Bran havia lhe dado, embora Mismet não sabia direio como pronunciar a palavra "fúnebre".
Mismet circulou até a frente do navio e estava admirando as figuras geométricas pintadas no "nariz" da embarcação quando notou Bran e Bellor caminhando na direção de suas respectivas esposas. Bellor revirou os olhos e disse:
- Imagino que as senhoras estão conversando sobre a rica história cultural de Gellius.
Elara riu levemente.
- Não, mas falando em história... Vocês ouviram falar que o Império proibiu a pesca de golfinho.
Bran e Xitea negaram com a cabeça.
Elara continuou:
- Ouvi isso em uma conversa na estalagem. Primeiro, achei que a influência do Império sobre Gellius seria a mesma do Reino, ou seja, quase nenhuma. Mas já estão falando que o porto de Wolfhame vai fechar. Se isso acontecer não teremos mais pesca de golfinho para... - o olhar de Elara pousou sobre os fundos da fazenda. - Tem alguma coisa diferente ali.
Bran disse:
- Onde?
- Ali - Elara disse, apontando. - Vocês não tinham alguns tanques de lagostas ou algum tipo de... - Elara parou de falar e todos ficaram em silêncio.
Mismet notou a súbita quietude e virou a cabeça para seguir o olhar dos adultos na direção sudoeste. Exceto por alguns viveiros à distância, não havia nada além de areia preta escaldante.
- Desculpe, xitea - Elara disse, finalmente quebrando o silêncio constrangedor. - Acabei de perceber o que é que está faltando. As lápides...
Xitea não disse nada, apenas manteve os olhos ao sudoeste.
Elara disse:
- Eu, hum, espero que não tenha sido obra de vândalos, aqueles malditos Akas...
- Não - Xitea reapondeu. - Eu mesma removi as lápides.
- Oh - Elara disse.
Sem qualquer outra explicação, Xitea se virou e se dirigiu apressadamente para o domo de entrada afim de esconder o choro. Após desaparecer, Bran disse:
- Por favor, perdoem minha esposa. Ela... simplesmente achou que não havia necessidade de alguém saber onde Thog está enterrado.
- Mas ela removeu "todas" as lápides - Elara disse. - Os pais e a tia dela também estão enterrados ali, não é mesmo?
Bran confirmou.
Mismet indagou:
- Quem é Thog?
Bran pulou de susto. Eles não haviam percebido Mismet na frente do navio e bao sabiam que ela estava escutando toda a conversa. Ele olhou para Bellor e Elara, depois olhou de volta para Mismet.
- Thog era o seu avô, Mismet.
- OHHH. Minha mãe também está enterrada ali?
- Não - Bran replicou. - Sua mãe não morreu em Gellius.
- OHHH - ela repetiu. Depoia olhou para Bellor e Elara e disse: - Tia Xitea me contou que mamãe era capitã de um cargueiro de especiarias, um dos navios do Rei.


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